Significados, sentidos e a especificidade do trabalho dos professores
Toda ação humana é gerada por e geradora de significados e de sentidos que se caracterizam, estes últimos por serem múltiplos. “O sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramilhos até se perderem de vista” (SARAMAGO, 1997, p.134).
Para que os seres humanos possam reconhecer-se no e pelo seu trabalho é preciso que se produzam sentidos, que não se atenham somente à sobrevivência física. É preciso que estes sentidos se multipliquem como diz o autor, gerando fonte de prazer e realização pessoais e de projeção quanto ao futuro da sociedade que desejam para as gerações que os sucederão. É preciso que estes se ramifiquem, buscando novos sentidos e novas realizações sempre com vistas ao
devir, à construção de um mundo melhor para todos os seres humanos, sem distinção de raça, cor, gênero ou classe.
O trabalho do professor gira fundamentalmente em torno da apropriação, produção e socialização do saber cientificamente elaborado, bem como do domínio dos meios que se utiliza para a veiculação deste saber. Ou seja, ao professor cabe a tarefa de possibilitar a sua formação e a do aluno nas esferas não cotidianas da vida social, produzindo possibilidades de acesso a objetivações como ciência, arte, moral etc. A própria existência da escola, “está voltada para propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao
saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber” (SAVIANI, 1991 p. 23).
Dentro do entendimento do que seja o significado do trabalho dos professores, e, partindo do pressuposto de que este está relacionado à tarefa particular do sujeito de perceber o que motiva a sua prática ou, dito de outra forma, de compreender qual é o sentido desta atividade, é preciso desenvolver formas de agir para que sentido e significado não se rompam, ocasionando o “
estranhamento” entre o professor e o produto de seu trabalho, ou seja, o processo de ensinar e aprender em seu sentido amplo.
Considerados ainda, sob a ótica do significado e sentido do trabalho docente, sem descuidar da relação entre as condições de efetivação desse trabalho, é possível analisar que os professores que demonstram paixão em ensinar, e que conseguem despertar paixão pelo aprender em seus alunos, são aqueles que conseguem integrar significado e sentido. São professores com um entendimento profundo da importância e amplitude de seu trabalho, conscientes das condições em que este se realiza, ou, em muitos casos, lutando muito por elas, assumem uma postura de não neutralidade e de “instauração da palavra”. Essa tarefa não é fácil, pois demanda um exercício metódico e constante num processo contínuo de construção/desconstrução dos significados e sentidos constituídos dentro de um modelo de sociedade onde predominam a individualidade e a
exclusão.
Apropriando-se dos significados e sentidos específicos de seu trabalho, dentro desse processo de construção/desconstrução, os professores se fazem, enquanto promovem a mediação entre o conhecimento cientificamente elaborado e a aquisição dos instrumentos ou meios que lhes permitam interferir e transformar esse conhecimento. A esse respeito Paulo Freire, reforça a posição de que esse conhecimento não pode de forma alguma ser somente técnico, deve ser também político, e por isso mesmo
ético, estético, crítico e fundamentalmente “não neutro”. Nas suas palavras:
Ao reconhecer que, precisamente porque nos tornamos seres capazes de observar, de comparar, de avaliar, de escolher, de decidir, de intervir, de romper, de optar, nos fizemos seres éticos. (...) Mas, é preciso deixar claro que a ética de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do lucro. (...) Falo, pelo contrário, da ética universal do ser humano. Da ética que condena o a exploração da força de trabalho do ser humano. (...) A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. ( FREIRE, 2002, p.16, 17).
Mais adiante, o autor se refere a não neutralidade do ato educativo e diz que:
Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê (Ibidem, p. 115).
Ao partilhar a mediação do conhecimento técnico e político, dentro do entendimento de que o ato educativo nunca é neutro, o professor assume uma postura pautada numa concepção de homem, de mundo ou de sociedade. Essa concepção, balizada em ações coerentes com o seu trabalho, pode ser considerado como “traço essencial” que possibilita ao professor interferir, junto com seus pares, no processo de transformação da docência, conferindo novos e múltiplos sentidos ao seu fazer pedagógico.
Sendo assim, pautado num processo de reconstrução, posicionando-se em favor de uma educação transformadora, este professor, apropria-se dos “traços essenciais”, busca respostas aos problemas colocados, pronuncia-se, não se omite, não aceita as mordaças, mistura coragem com amorosidade, assume o lugar de militante e de não neutralidade política. Coerente com sua concepção, integrando significado com o sentido produzido nessa concepção, o professor assume a autonomia possível, transforma ao se transformar e participa na construção de novos projetos de educação: que garantam acesso irrestrito de todas as riquezas simbólicas a todos os cidadãos sem distinção de idade, sexo, cor, raça ou classe, que possam promover e instaurar a “ética universal do ser humano”.
Ao falar no produto do trabalho dos professores é preciso considerar que estes não trabalham com objetos, que se moldam e se ajustam na medida em que vão sendo transformados pelas mãos hábeis do trabalhador. O produto do trabalho do professor supõe relações interpessoais, supõe o outro, que são sujeitos constituídos em diferentes condições, mas que têm em comum o fato de estarem pautados na
cultura capitalística[i]. Por conta disso, o processo de trabalho se inicia e se completa em uma relação estritamente social, permeada e carregada de história. Esta relação entre professor e aluno é uma relação entre seres humanos, constituídos histórica e culturalmente nas e pelas relações sociais. O pressuposto da indissociabilidade do ensinar e do aprender inclui também a parceria entre professor e aluno na realização deste importante trabalho. Por diversas vezes, já se falou do produto do trabalho do professor, mas é importante esclarecer que se faz referência ao professor de forma isolada, porque estamos tratando dele, neste momento, tão somente por este fato. No entanto, conceitualmente, entende-se que há uma relação de mutualidade entre os lugares de professor, aluno, professor, aluno...
Estabelecer relações cordiais que possibilitem crescimento mútuo carece sem dúvida alguma de afetividade, de respeito recíproco e reconhecimento do outro enquanto único, múltiplo, capaz de produzir história. Por lidar com gente, o trabalho do professor não pode ser frio e automático, é preciso um querer bem, um sentir-se bem com o outro, propiciando uma relação harmoniosa e produtora de sentidos para ambos, professor e aluno.
E o que dizer, mas, sobretudo que esperar de mim, se, como professor, não me acho tomado por este outro saber, o de que preciso estar aberto ao gosto de querer bem, às vezes, à coragem de querer bem aos educandos e à própria prática de que participo. [...] O nosso é um trabalho realizado com gente, miúda, jovem ou adulta, mas gente em permanente processo de busca. Não sendo superior nem inferior a outra prática profissional, a minha, que é a prática docente, exige de mim um alto nível de responsabilidade ética de que a minha própria capacitação científica faz parte. É que lido com gente. (FREIRE, 1996, p.159, 165).
Com estas frases, denota-se com muita clareza a especificidade do trabalho do professor. Trabalho que não pode, de forma alguma, prescindir da rigorosidade do saber científico, do compromisso político com uma
educação crítica e de qualidade para todos, mas que também não deve ser despojado da amorosidade e afetividade que é pressuposto para o estabelecimento de relações de cumplicidade necessárias ao processo de ensinar e aprender.
Ao levar em conta que essas relações se dão em um espaço institucional caracterizado em parte por sua perversidade, autoritarismo e mais uma gama de vícios intencionais ou não, nem sempre é possível estabelecer esses vínculos. Salas de aula lotadas, professor com carga horária cheia e geralmente tendo que se deslocar de uma escola à outra, num curto espaço de tempo, salários indignos que não motivam, etc. Essas são algumas das questões que interferem negativamente na relação entre professor e aluno. Nessa perspectiva, em geral, o processo de ensinar e aprender tende a se realizar apenas no nível de cumprimento de dever. O professor dá a sua aula, se o aluno aprendeu ou não, isso não importa, o dever foi cumprido! Com isso, o processo se rompe, o trabalho do professor fica comprometido, conseqüentemente a qualidade do processo de ensinar e aprender também fica comprometido. O insucesso do aluno é a conseqüência mais grave de todo esse processo e na maioria das vezes aceito como normal.
Diante da impossibilidade de sucesso do aluno, enfrentando tantas adversidades, o professor pode sentir-se impotente, incapaz de lutar contra essa “coisa” que parece imobilizar e sufocar os seus objetivos e silenciar-se. No entanto, se ele perceber a escola a partir mesmo de suas ambigüidades e contradições, entendendo-as como características da ordem social das sociedades capitalistas, é possível desenvolver outras formas de resistência não silenciosas. Algumas limitadas, em alguns casos corporativistas, mas todas sugerindo que “o poder a serviço da dominação nunca é total” (GIROUX, 1986). Todas estas formas de resistência desempenham seu papel em determinadas situações de opressão, no entanto, para que as ações possam proporcionar mudança e transformação é preciso que estejam fundamentadas em concepções políticas e sociais claras, ligadas a um comprometimento firme contra todas as formas de injustiça, exclusão e dominação. Nessa perspectiva, é possível que o professor ao assumir essa postura esteja de
certa forma apropriando-se de “traços essenciais” (Márkus, 1974, p31) que podem ser caracterizados a partir da concepção vigotskiana como marcas de
vivência estética.
Msc Maria Salete de Miranda